Langley
Poço dos Slowpoke, Cidade de Azalea, Johto
Quinta-feira, 12 de maio
O calor pairava sobre a Cidade de Azalea com o peso opressivo de um avental de chumbo. O chão sob os pés de Langley estava rachado e ressecado, tão frágil que parecia prestes a se despedaçar e arrastá-lo para as profundezas da terra. O ar tinha uma presença sufocante, como o hálito ardente de um monstro, quente e denso contra sua nuca, enquanto ele seguia pelo caminho em direção a um dos túneis secretos que levavam ao poço.
Uma seca interminável, que já durava meses, agarrava a pequena cidade no sul de Johto com uma ferocidade sem precedentes. O céu sobre Azalea era um vasto e desolado manto azul pálido, sem vestígios de nuvens ou promessas de chuva. Nem mesmo o alívio de uma brisa cortava o ar estagnado. A seca havia transformado a cidade em um reflexo desolador de sua antiga vitalidade: o riacho que antes serpenteava pelo cidadezinha secou completamente, deixando para trás apenas um leito rochoso e cinzento, como uma cicatriz profunda. Os campos, antes férteis, eram agora terrenos áridos cobertos de caules quebradiços e mortos. Até as árvores de Apricorn, que haviam sobrevivido às intempéries por gerações, começavam a sucumbir, suas folhas amarelando sob o sol imperdoável.
A seca não poupou ninguém. Famílias que tinham raízes profundas em Azaléia estavam partindo uma a uma, abandonando suas casas e fechando as portas de seus negócios. Os carvoeiros, artesãos de Pokébolas, ferreiros e outros que dependiam dos recursos da cidade já haviam partido para a capital, em busca de novas oportunidades. O silêncio que se instalou na cidade era palpável, uma lembrança constante de que Azalea estava desaparecendo de pouquinho em pouquinho.
Em uma tentativa desesperada de evitar o colapso total, o Planalto Índigo e o primeiro-ministro de Johto enviaram fundos ao conselho local, que contratou uma empresa para perfurar as cavernas subterrâneas do Poço Slowpoke. Havia esperança de que ainda restasse água nas profundezas, o suficiente para sustentar a cidade por mais algum tempo. Enquanto isso, os poucos moradores que permaneciam racionavam cada gota de água que tinham, resistindo ao calor implacável e à incerteza de dias que pareciam não ter fim.
Azalea oscilava à beira da ruína, agarrando-se à sua frágil importância como parada obrigatória para treinadores que se dirigiam à Liga Pokémon. Sem isso, pensou Langley, o lugar já seria uma cidade fantasma. De seu ponto de vista perto da entrada do poço, os telhados verde-amarelados do ginásio do tipo Inseto brilhavam sob a luz opressiva do sol.
O Planalto Índigo, temendo o colapso de Azalea, havia fechado um acordo com Bugsy, o jovem líder de ginásio. O treinador do tipo Inseto havia sido encarregado de promover o racionamento de água para manter a cidade viva, reunindo a população decrescente que ainda não havia fugido para a movimentada cidade de Goldenrod. Juntos, eles estavam lutando contra uma seca implacável que estava sufocando a cidade por meses. Enquanto isso, a Morning Dew, a empresa contratada para cavar mais fundo no Poço Slowpoke, prometeu salvação na forma de um lençol freático inexplorado escondido sob a cidade: uma rede de cavernas subterrâneas que poderia fornecer água fresca para Azalea e acabar com a seca, se eles pudessem alcançá-la.
Mas Langley sabia que não devia acreditar em tais milagres. Ele tinha visto o que havia sob a superfície de Azalea e o que havia acontecido com o Slowpoke que antes vagava livremente pela cidade, estimado por seu povo. As profundezas do poço continham segredos obscuros demais para a maioria sequer compreender.
Oficialmente, os Slowpoke haviam desaparecido. Alguns disseram que eles haviam se retirado para a Caverna União para escapar do calor gritante. Outros acreditavam que o Pokémon havia previsto a seca e só retornaria quando as chuvas chegassem. A verdade, no entanto, era muito mais sombria. A Equipe Rocket havia pegado as criaturas, escondendo-as nas sombras do antigo poço. Langley não queria pensar no que aconteceria com elas em seguida.
Langley se mexeu desconfortavelmente, as botas estalando no chão seco e rachado abaixo dele. Dra. Veronika, chefe da dita “equipe de escavação”, estava encarregada do lado científico das coisas, enquanto Próton e Sird dirigiam a logística. Os Slowpoke tinham sido mutilados, suas caudas cortadas para serem vendidas por lucros impressionantes no mercado negro. As caudas não eram apenas um meio de financiar as operações da Equipe Rocket, elas eram iscas. Uma distração para os soldados de baixa patente, que acreditavam que o propósito da operação era restaurar o poder da organização no submundo criminoso de Johto e Kanto.
Langley engoliu em seco, o nó em sua garganta apertando. Ele não podia negar a verdade que assombrava cada passo seu: isso nunca foi apenas sobre dinheiro.
— Se Giovanni não tivesse sido derrotado por aquelas crianças… — Langley murmurou amargamente, as palavras com gosto de cinzas. Ele cerrou os punhos. — Se ele não tivesse nos abandonado depois do que aconteceu em Saffron...
A Equipe Rocket tinha sido deixada em frangalhos após o desaparecimento de Giovanni, dispersa e humilhada. Mas esse plano — esse era o que os traria de volta. Esse era o que deixaria seu antigo líder orgulhoso — ou o forçaria a reconhecer a força da organização que ele havia deixado para trás.
Os olhos de Langley se voltaram para a entrada escura do poço, o ar ao redor dele mais frio e pesado do que o mundo queimado pelo sol acima. Para Azalea, para o Slowpoke, o poço era uma sentença de morte. Para a Equipe Rocket, era o começo de algo muito maior.
Giovanni veria a grandeza de sua organização mais uma vez. A Equipe Rocket ressurgiria das cinzas, mais forte do que nunca, e dominaria a região de Johto. Eles não falhariam como falharam em Kanto.
Quando Langley entrou nos túneis, o cheiro forte e doce do óleo da cauda de Slowpoke o atingiu como um soco nas narinas. O cheiro, avassalador e enjoativo, penetrou nos poros das paredes de pedra úmidas ao redor dele. Ele se agarrou ao ar, uma névoa pegajosa que parecia penetrar em seus pulmões, lembrando-o do que a Equipe Rocket havia feito com essas criaturas. Lenta e metodicamente, eles drenaram o fluido oleoso e rosa de suas caudas para tanques. Langley não sabia para que a Dra. Veronika pretendia usá-lo, mas não conseguia se livrar da sensação de que era algo muito mais sombrio do que qualquer coisa que ele se importasse em contemplar.
Nos círculos científicos, a substância era conhecida como yadonina. Era o que tornava as caudas de Slowpoke tão valiosas, não apenas para as pessoas, mas também para Shellder, cuja dieta era especialmente adequada para consumi-la sem sofrer consequências. Era uma substância que a maioria dos Pokémon evitava instintivamente, mas Langley não entendia o porque ainda. Mas para os humanos, particularmente em regiões como Kalos e Alola, a cauda do Slowpoke havia se tornado uma iguaria altamente cobiçada, servida em restaurantes finos onde era cozida no vapor ou seca. Nestas regiões era comum a prática de criação de Slowpoke em fazendas, onde ficavam ao ar livre e suas caudas podiam levar tempo o suficiente para se regenerarem.
Johto era diferente dessas regiões. Em Azalea, os Slowpoke eram reverenciados. As lendas locais falavam da habilidade do Pokémon de invocar chuva com seus bocejos. Eles eram considerados seres sagrados, chegava a ser um tabu machucar um Slowpoke, mesmo que de propósito. Por gerações, os Slowpoke viveram entre os habitantes da cidade, vagando pelas ruas, tomando sol no rio e fazendo suas casas nas cavernas do Poço do Slowpoke.
Para a Equipe Rocket, no entanto, eles não passavam de presas fáceis.
Sob o disfarce da empresa de tratamento de água Morning Dew, os agentes da Equipe Rocket se infiltraram em Azalea, cavando mais fundo no Poço Slowpoke do que qualquer um ousou antes. Os túneis do poço já foram um lugar silencioso e sagrado, mas agora estavam vivos com o zumbido das máquinas. Bem abaixo, a Equipe Rocket havia descoberto um aquífero subterrâneo repleto de Slowpoke e Slowbro, aproveitando para explorar as criaturas por seu precioso óleo e suas caudas. O processo estava acontecendo há meses — meses que se passaram em um borrão de exploração e crueldade muito antes de Langley chegar na semana anterior com Cassie e Chadwick.
Langley não conseguiu deixar de murmurar baixinho enquanto vagava mais fundo na caverna, as palavras amargas em sua garganta.
— Se eles são tão sagrados aqui nessa cidade por que não fazem nada para nos impedir de machucá-los?
Mas ele não esperou por uma resposta. Ele já havia feito essa pergunta muitas vezes. A resposta era clara: nada poderia parar a Equipe Rocket, nem mesmo a dita natureza sagrada dos Slowpoke.
A caverna ficou mais escura enquanto ele andava, o som de suas botas ecoando contra o chão de pedra molhado e irregular. Por fim, ele chegou ao coração da operação: um laboratório improvisado onde a Dra. Veronika e sua equipe estavam trabalhando duro. O equipamento era rudimentar, mas servia ao seu propósito. Os cientistas se moviam com precisão metódica, seu foco ininterrupto enquanto trabalhavam na próxima fase de seu experimento cruel.
O objetivo, como Langley havia aprendido, era acelerar o já lento processo de regeneração da cauda do Slowpoke. Normalmente, quando um Slowpoke perdia sua cauda, levava semanas — às vezes até meses — para que a cauda voltasse a crescer completamente, um processo meticuloso que envolvia a regeneração de tudo, desde os ossos da coluna até as glândulas especializadas e terminações nervosas. Mas a Dra. Veronika estava determinada a mudar isso. A equipe havia começado a fazer experimentos com células-tronco de Ditto, já que elas tinham a capacidade de emular os tecidos da cauda do Pokémon. Eles injetaram as células diretamente nos tocos da cauda do Slowpoke, tentando acelerar o processo de regeneração. Para acelerar ainda mais as coisas, os cientistas usaram extratos concentrados de Sitrus e Lum Berries — um anestésico destinado a estimular o processo de regeneração. O objetivo final deles era fazer as caudas dos Slowpokes se regenerarem em horas, não semanas.
E o plano era simples: cortar as caudas, colher o óleo precioso e repetir o processo quantas vezes fossem necessárias. Repetidamente.
Mas havia consequências. Sempre havia consequências.
O corte contínuo das caudas dos Slowpokes os tornava mais vulneráveis a cada ciclo que passava. Seus corpos, já adequados para lidar com a dor em um ritmo lento, agora se sintonizavam com ela de uma forma que tornava cada ferimento mais agudo, cada corte mais doloroso. Seus nociceptores que já eram lentos tinham se tornado hipersensíveis a cada novo ferimento feito no processo de cortar as caudas. O resultado era uma consciência lenta e agonizante de cada fatia de suas caudas, cada pedaço de tecido que era arrancado.
Langley podia sentir seu estômago revirar em simpatia, mas era o desamparo que realmente o atormentava. Enquanto os gritos do Slowpoke ecoavam pela caverna, um som que parecia vibrar através das próprias pedras sob seus pés, ele não pôde deixar de sentir uma raiva profunda e fervente. Isso não era ciência, era sadismo disfarçado de progresso. O entusiasmo frio da Dra. Veronika só piorou a situação. Ela parecia se deleitar com seu trabalho, movida por uma necessidade obsessiva de provar a si mesma. Langley mal conseguia suportar a visão, muito menos o som, do sofrimento que o Slowpoke estava suportando.
E ainda assim, ele não conseguia desviar o olhar. Ele tinha que assistir, sabendo muito bem que os experimentos não parariam, não até que extraíssem até a última gota de yadonina do Slowpoke. Não até que drenassem o poço de sua vida, deixando apenas criaturas vazias e deprimentes.
— Oi, — Langley cumprimentou enquanto se ajustava em seu casaco de laboratório esfarrapado, o tecido desgastado de muitas mudanças no ambiente úmido e sufocante do poço.
Os outros cientistas mal olharam em sua direção, seus olhos fixos em seus microscópios, notas ou experimentos. Lembrou Langley de seus dias na Universidade de Celadon, onde ele era o mais novo de sua classe – um prodígio saído das periferias de Saffron que haviam chegado à faculdade na parte de trás das principais notas e uma bolsa de estudos concedida por um professor bem-intencionado. Naquela época, ele era apenas um adolescente, um garoto magro cercado por adultos que o viam como pouco mais que uma curiosidade.
Langley sempre foi o mais jovem entre seus colegas, seja na academia ou agora, entre os cientistas do Team Rocket. As pessoas aqui eram uma mistura de extremos. Alguns foram excepcionais em seus campos: estudiosos que já haviam lecionado nas universidades de Goldenrod, Celadon ou Lilycove; Pesquisadores que foram aprendizes de renomados cientistas como Professor Carvalho, Professor Westwood ou mesmo Mr. Pokémon. Outros haviam trabalhado em laboratórios de prestígio, desde as instalações de ponta de Cinnabar até a Silph Co. no coração de Kanto ou mesmo na Sub Rosa em Johto. Eram indivíduos com mestrado, doutorado e um extensa bibliografia de artigos.
E havia os outros: cientistas cujas carreiras haviam desmoronado sob o peso de experimentos fracassados, violações éticas ou mediocridade simples. Aqueles que não conseguiram elaborar propostas de pesquisa coerentes ou que foram expulsas da academia por irem longe demais. Ali, loucos e gênios trabalhavam lado a lado, unidos por um propósito singular - e supervisionados por uma mulher que era brilhante e insana em igual medida: Dr. Veronika Prometheus.
— Oi, Langley, — alguém murmurou, seu foco em uma placa de Petri enquanto ajustava um microscópio.
— Hum, oi, — ele respondeu, levantando desajeitadamente a mão antes de ir para sua bancada de trabalho. Lá, seu Ditto aguardava, a geleca rosa balançando levemente em saudação. Langley se permitiu um pequeno sorriso, mas desapareceu enquanto olhava ao redor da sala.
— Olá, Langley — outro cientista o cumprimentou sem levantar os olhos do trabalho deles.
— Oi … — Langley respondeu novamente, a palavra sentindo -se vazia quando deixou seus lábios. Ele não sabia os nomes deles - ele não estava familiarizado com nenhum dos cientistas ali. O laboratório improvisado, juntamente com equipamentos recuperados e tecnologia roubada, parecia mais uma prisão do que um local de trabalho. O silêncio foi opressivo, quebrado apenas pelo zumbido e ronrom das máquinas e pelo ocasional rabisco de caneta no papel.
Ele sentiu falta de Chadwick e Cassie, as únicas duas pessoas em Team Rocket que ele poderia chamar de conhecidos, amigos talvez, sei lá, ele não era o melhor em relações humanas. Eles estavam estacionados nos níveis superiores do poço, longe dos horrores do laboratório. Chadwick e Cassie faziam parte da equipe de colheita, encarregados de cortar caudas dos Slowpoke, treinar seus Pokémon e cavar o leito rochoso para desviar a água para Azalea. A maior parte do fluxo do aqüífero era redirecionada para alimentar as máquinas usadas para drenar a yadonina do Poço Slowpoke e injetar os estimulantes regenerativos. Tudo um processo extremamente brutal, mas pelo menos eles não estavam diretamente envolvidos nos experimentos como Langley estava.
Langley olhou para sua estação de trabalho, onde pilhas de notas estavam ao lado de seu equipamento. Este era o seu mundo agora - um mundo de crueldade desapegada, pontuada pelo som dos gritos de Slowpoke ecoando fracamente de mais profundamente dentro da caverna. Ele deu um tapinha no seu Ditto, a forma gelatinosa e macia e gelatinosa do Pokémon, oferecendo uma pequena medida de conforto.
— Vamos acabar com isso logo — ele murmurou baixinho, tentando não pensar muito sobre o trabalho pela frente.
Ele tinha apenas um trabalho ali: fazer a cultura de células-tronco de Ditto. Extrair material genético de seu próprio Pokémon não era problema, nem danoso ao Pokémon ameba, mas ele sempre pegava uma pequena amostra e isolava-a em uma placa de Petri e deixava para que a divisão celular fizesse seu trabalho. Ditto conseguiam reconstruir seus corpos rapidamente, então extrair uma pequena cultura de células para repassar para seus colegas era algo até que fácil, embora fosse algo repetitivo e dado à demanda de Dra. Veronika, ele precisava ter o bastante para que fosse injetado nos Slowpoke antes que a cota de yadonina do tanque naquele dia fosse cumprida para ser enviada para o QG novo, sendo envido via as plataformas de teletransporte que eram ativadas sempre no mesmo horário.
Langley tinha um único trabalho ali: produzir culturas de células-tronco de Ditto. Era um procedimento aparentemente inofensivo, ainda que moralmente complicado, e Ditto, graças à sua maleabilidade e habilidades regenerativas únicas, não sofria com a extração de pequenas amostras de tecido. Langley isolava um fragmento minúsculo em uma placa de Petri e deixava o processo natural de divisão celular seguir seu curso. A regeneração quase instantânea do Pokémon tornava o ciclo eficiente, dispensando extrações frequentes. Ainda assim, ele precisava monitorar as culturas regularmente para garantir que houvesse ampolas suficientes para atender à demanda crescente da doutora.
O trabalho, embora tecnicamente simples, era repetitivo e tedioso. Mas Langley sabia que a Dra. Veronika não tolerava atrasos ou insuficiências. Ao final de cada dia, a yadonina extraída precisava estar acumulada em um tanque de mais de trezentos litros, posicionado sobre uma plataforma de teletransporte, pronta para ser enviada ao novo quartel-general da Equipe Rocket. Desde que haviam perdido a base de Mahogany, a localização exata do novo QG era mantida em segredo. Tudo por culpa de Dante, o filho de Giovanni.
Langley rangeu os dentes ao lembrar do garoto ruivo.
— Moleque maldito... — murmurou, seus punhos cerrando ao lado do corpo.
Há poucas semanas, Dante havia fugido do QG de Mahogany, correndo risco de expôr os planos da Equipe Rocket e obrigando a organização a se realocar às pressas para caso aquilo viesse a acontecer. Ele, Cassie e Chadwick haviam sido enviados para capturar o garoto a pedido de Ariana, tia dele, mas foram derrotados nas montanhas entre Violet e Cherrygrove. Dante, acompanhado de dois jovens treinadores, um par de irmãos, não apenas superou os três Rockets naquela batalha nas montanhas, mas também tinha roubado o balão deles e os deixado à mercê das autoridades locais de Cherrygrove. Se não fosse por Annelise Dell e sua intervenção, Langley sabia que estaria cumprindo prisão perpétua na penitenciária de Tohjo Falls ou enfrentando um tribunal marcial. Ele não queria responder pelas coisas as quais havia feito.
Falando no demônio, lá estava ela. Os cabelos loiros presos em marias-chiquinhas que contrastavam com o restante solto, Annelise caminhava com sua usual confiança ao lado da Dra. Veronika, os olhos cor de chá de hibisco captavam tudo que via no laboratório. Atrás delas, vinham as gêmeas Annie e Oakley Zanner, agentes de elite da Equipe Rocket. A dupla conversava animadamente sobre os avanços da operação Cauda de Slowpoke enquanto a Dra. Veronika se aproximava da bancada de Langley.
— Vejo que está extraindo mais células-tronco, jovem Langley — disse Veronika, observando o progresso dele.
A cientista-chefe tinha uma aparência única: cabelos azuis presos por grampos que imitavam hélices de DNA, um vestido preto e turquesa que parecia mais adequado para uma conferência de alto nível do que para um laboratório cavernoso, e saltos altos que ecoavam a cada passo. Seu jaleco branco ostentava, no peito, um "R" escarlate, bordado como um distintivo de honra.
Langley engoliu seco, mas acenou em confirmação.
— Sim, doutora. Estou garantindo que a quantidade seja suficiente para as injeções.
Veronika sorriu, algo entre condescendência e genuína apreciação.
— Sempre admirei a maneira como as células de Ditto se comportam como uma tela em branco — comentou ela, cruzando os braços. — Sem a sua pesquisa, jovem Langley, eu nunca teria conseguido conceber a ideia de reconstruir as caudas dos Slowpoke em tão pouco tempo. É irônico, não? Um trabalho que poderia ter revolucionado a medicina agora impulsiona um império de possibilidades para a Equipe Rocket.
Langley enrubesceu. Ele se lembrava bem de sua tese, apresentada com grandes esperanças no auditório da Universidade de Celadon. Havia sido um trabalho ousado, explorando a capacidade de Ditto de replicar códigos genéticos, não apenas para reprodução Pokémon, mas para regeneração de tecidos e órgãos. Ele imaginara um futuro onde Ditto poderia ser usado para cultivar órgãos sob demanda, salvando vidas humanas e Pokémon.
Mas os professores e a universidade não compartilhavam sua visão. Consideraram sua pesquisa antiética, alertando para os perigos de uma demanda excessiva por Ditto e suas células, o que poderia levar à caça desenfreada e eventual extinção da espécie apenas para os fins propostos por Langley. Além disso, o conceito de transformar Ditto em meros Pokémon de abate para transplantes gerara uma indignação que manchou a reputação de Langley e o isolou na academia, fazendo-o ser expulso quando ele foi longe demais em um experimento.
— A ciência da academia é míope — continuou Veronika, interrompendo os pensamentos de Langley. — Eles temem as possibilidades, agarrando-se a velhos paradigmas como se fossem um escudo. Aqui, somos livres para explorar o verdadeiro potencial do conhecimento, não importa o custo.
Langley assentiu, mas uma sensação de desconforto crescia em seu peito. Ele sabia que havia cruzado uma linha ao se juntar à Equipe Rocket, mas cada conversa com Veronika apenas reforçava a sensação de que essa linha estava ficando cada vez mais distante no horizonte.
— Enfim, eu estava a comentar com as agentes Annie e Oakley sobre como a operação tem progredido desde que tomei sua pesquisa e a incorporei à prática — continuou Veronika, ajustando o jaleco com a autoridade de quem ajusta um símbolo de poder. — Próton e Sird já cortaram mais do que o necessário, e os compradores para as caudas já estão garantidos. Não acha que a reascensão da Equipe Rocket se mostra cada vez mais gloriosa?
Langley assentiu em silêncio. Não queria discordar, mas também não encontrava palavras para concordar plenamente.
— Bem, jovem Langley, considerando a importância de sua pesquisa, andei pensando: talvez queira subir de posição. Deixar de ser um cientista-júnior e passar ao posto de cientista-médio. O que acha?
Ele piscou, surpreso. Antes que conseguisse responder, Oakley interveio:
— Seria uma grande vantagem para você.
— Temos substância suficiente para avançar à próxima etapa — acrescentou Annie, com um sorriso fino. — Como cientista-médio, poderá montar sua própria equipe e conduzir experimentos e expedições.
Langley hesitou, mas foi interrompido por Annelise Dell:
— Eu quem convenci que deveria receber essa promoção — disse ela, cruzando os braços. — Depois do fiasco com o filho de Giovanni e sua fuga, isso é o mínimo que o senhor Próton e a Dra. Prometheus puderam fazer por você. Vai desperdiçar essa oportunidade, nerdola?
Langley sentiu o rubor subir ao rosto. A zombaria de Annelise cutucava algo dentro dele, algo que remontava aos dias de universidade.
— Na-não... — gaguejou, finalmente encontrando a voz.
Veronika sorriu, satisfeita, enquanto ajustava os grampos em forma de hélices de DNA que prendiam seu cabelo azul.
— Perfeito. Alguma exigência, jovem Langley?
Ele pensou rápido, lutando para processar o turbilhão de emoções. Uma promoção significava mais responsabilidades, mais visibilidade, mas também mais controle sobre o próprio trabalho. Talvez fosse a chance de desviar o curso dos experimentos, de mudar algo, mesmo que pequeno, sem levantar suspeitas.
— Hum... talvez... — começou com cautela. — Um espaço mais adequado para conduzir as culturas de células. O ambiente atual é, hum, menos que ideal. E, talvez... acesso a mais recursos de pesquisa.
Veronika inclinou a cabeça, analisando-o com olhos brilhantes e calculistas.
— Um pedido razoável. Posso providenciar um espaço mais apropriado e recursos adicionais. Mas espero, jovem Langley, que isso signifique resultados ainda mais promissores para a Equipe Rocket.
Langley engoliu seco, sentindo o peso do compromisso.
— Sim, claro... resultados. — Hesitou, mas decidiu arriscar. — Também gostaria de pedir que... se não for muito... que os recrutas Chadwick Smith e Cassandra Wayland possam me acompanhar como assistentes e guarda-costas. Eu posso exigir isso, não é?
Veronika sorriu, um sorriso calculado.
— Não vejo por que não. — Ela ajustou novamente o jaleco. — Apenas peço que apresente um relatório detalhado. Estamos na fase final das operações e daremos uma breve pausa para mover o maquinário aos poucos. Parece que os habitantes locais estarão organizando festividades nas próximas semanas, e Sird exigiu que qualquer evidência fosse removida. Portanto, já aviso, jovem Langley: caso esteja investigando fora dos túneis, evite ser pego ou visto. Está entendido?
— Sim, Dra. Veronika — respondeu ele, contendo o tremor na voz.
Enquanto a cientista-chefe e os outros agentes se afastavam, Langley respirou fundo, tentando ignorar a sensação de estar preso em um jogo que não sabia como vencer. A promoção parecia uma oportunidade, mas ele sabia que, no fundo, era também uma armadilha.
Blue
Cidade de New Bark, Johto
Quinta-feira, 12 de maio
O dia de Blue tinha oficialmente ido por água abaixo no momento em que um skatista colidiu com ela a caminho do laboratório do Professor Elm. Ela se sentia como se tivesse sido atropelada por uma manada de Donphan furiosos.
— Arceus, o que foi isso? — ela reclamou, limpando a sujeira das roupas. Ela havia caído sentada no chão, com a roupa agora coberta de terra e grama. Meio desorientada, piscou para focar no culpado, que estava ali parado com o sorriso mais irritantemente casual que ela já tinha visto.
O garoto parecia estar tentando imitar o estilo dos “filhinhos de papai” de Goldenrod ou Saffron, mas falhando miseravelmente. Ele usava uma jaqueta vermelha sobre um moletom branco e uma camiseta preta, uma escolha no mínimo esquisita para um dia quente. Suas calças capri deixavam as panturrilhas expostas, e os tênis vermelhos e brancos, embora novos, pareciam nunca ter sido realmente usados para algo útil. Para completar o visual, ele usava um boné preto e amarelo virado para trás.
Seus olhos dourados brilhavam com uma travessura irritante, contrastando com seu rosto de garoto interiorano. O cabelo preto caía na testa em uma franja, dando a ele um ar meio desleixado, quase charmoso.
Blue bufou. Ele era o skatista mais caipira que já tinha encontrado.
— Cadê a sua educação? — ela disparou, esperando que ao menos ele a ajudasse a se levantar. — Vocês, meninos de Johto, foram criados por Arcanines selvagens ou o quê? Ajude uma mademoiselle como eu, s’il vous plaît!
— Foi mal, eu me desliguei — respondeu ele, com a voz um pouco rouca. Estendeu a mão para ela. — Tenho TDAH, sabe? Minha cabeça viaja às vezes, especialmente quando estou ansioso. Eu estava correndo pro laboratório do professor e, bem, acho que não percebi você no caminho. Meu nome é Ethan. Ethan Barnes. E o seu, gatinha?
Blue lançou um olhar fulminante enquanto terminava de limpar a sujeira das roupas.
— Primeiro, não me chame de gatinha. Você nem me conhece, caipira — ela retrucou, com o tom afiado. — Segundo, meu nome é Blue. Só Blue. Sem sobrenome. Você não precisa saber.
— Uau, a Meowth tem garras! — Ethan deu um passo para trás, levantando as mãos em rendição falsa. — Foi mal! Não quis ofender. É que eu falo assim com minhas amigas às vezes. Desculpa aí, Blue Sem-Sobrenome.
Blue suspirou, revirando os olhos. Que idiota.
— Você teve sorte de eu estar de bom humor — disse, massageando as têmporas. — Senão eu te daria um tapa por me chamar disso.
Ethan deu um sorriso nervoso, trocando o peso entre os pés.
— Então — Blue continuou, com os braços cruzados — você é um morador daqui, né? Eu tenho uma reunião marcada com o Professor Elm, e já que parece que você está indo pra lá também, suponho que poderia gentilmente me guiar até o laboratório?
Ethan relaxou, dando de ombros.
— Claro, Blue Sem-Sobrenome. Me segue.
Blue seguiu o garoto enquanto ele subia em seu skate, deslizando à frente em um ritmo constante. Ele manteve uma distância de cinco a oito passos na frente dela, mas a velocidade era fácil de acompanhar. O ritmo a fez lembrar dos seus primeiros dias como treinadora iniciante em Kanto. Aqueles dias pareciam tão distantes agora—ela era uma treinadora experiente, praticamente uma treinadora ás àquela altura. Trabalhar naquele bico de detetive para ganhar um pouco de dinheiro extra não era exatamente glamouroso, mas fazer o quê? Ninguém vivia apenas de batalhas Pokémon.
Os dois caminharam pelas ruas de paralelepípedo e terra de New Bark. Finalmente, chegaram a uma residência murada no topo de uma colina, bem diferente das amplas instalações de pesquisa do Professor Carvalho em Pallet Town. Moinhos de vento e antenas parabólicas salpicavam as colinas ao redor da propriedade, trazendo um toque de modernidade à paisagem rústica. New Bark Town fazia jus ao nome: era uma "nova casca" nas colinas silenciosas e pastorais que cercavam a pequena cidade.
Na base da colina, estava um homem magro na casa dos trinta, segurando uma incubadora de ovos em seus braços. Blue o reconheceu imediatamente de uma foto que havia visto em um dos antigos álbuns do Professor Carvalho: Professor Augustus Gabriel Elm, a maior autoridade em pesquisa Pokémon de Johto. Elm era o responsável por dar aos novos treinadores seus primeiros Pokémon parceiros – seus iniciais.
Blue se lembrou do que Erlking, o homem loiro que a havia contratado para este trabalho de investigação, havia dito sobre Elm. Duas semanas atrás, um garoto ruivo havia roubado um Pokémon do laboratório de Elm – um Chikorita, de todas as opções possíveis. Imagens de vigilância, das câmeras que milagrosamente não haviam sido destruídas durante a invasão, capturaram o garoto em flagrante.
Ela cruzou os braços, franzindo a testa enquanto refletia. Quem roubaria um Chikorita? pensou. É um Pokémon do tipo Grama, não é o mais popular entre os garotos. Se ele quisesse algo forte, teria pegado um Totodile ou um Cyndaquil, certo? Mas, por outro lado, talvez não fosse sobre força. Talvez fosse algo mais... pessoal. Ao menos é o que ela supunha.
Quando Blue se aproximou, o Professor Elm se virou para ela, sua expressão era uma mistura de esperança e frustração.
— Você é a menina que está investigando, certo? — perguntou Elm, com urgência na voz, suas mãos tremendo levemente. — A polícia abandonou o caso depois de concluir que o garoto foi coagido por membros da Equipe Rocket, mas eu não acredito nisso. Se ele tivesse sido coagido, teria devolvido o Chikorita ou aceitado uma recompensa depois de lidar com aqueles capangas!
Blue inclinou a cabeça, considerando suas palavras. Fazia sentido. Se o garoto tivesse agido sob pressão, suas ações teriam mostrado algum sinal de arrependimento ou obrigação, mesmo que ele estivesse com medo de cooperar totalmente. Mas, em vez disso, ele desapareceu com o Chikorita, sem deixar rastros.
Bem, talvez não completamente sem rastros, já que a polícia conseguiu criar retratos gerados por IA do garoto, como Blue descobriu em Cherrygrove. Era um trabalho improvisado, mas a polícia local aparentemente não tinha orçamento para contratar um ilustrador forense. Ela quase riu quando viu os esboços. Como alguém poderia ser identificado a partir de um rosto borrado e disforme? Mas ela decidiu deixar isso de lado por enquanto. Ela tinha coisas maiores com que se preocupar.
Sua investigação sobre o paradeiro de Dante já havia tomado alguns rumos inesperados, especialmente desde que ela entrou em contato com Jay Erlking. O pagamento estava sendo bom, mas ela não esperava se envolver tanto no mistério. O caso estava começando a parecer algo muito maior do que um simples roubo, algo que poderia até chegar aos maiores círculos.
— Relaxa, professor. Sei que você está um pouco tenso, mas eu já estou no caso — disse Blue, tentando aliviar a tensão. Sua voz estava calma, mas ela não conseguia suprimir completamente o desejo de tomar as rédeas da situação. Era o que ela fazia de melhor. — Podemos entrar e avaliar tudo com mais calma.
Elm parecia respirar um pouco mais aliviado com suas palavras, mas seus ombros ainda estavam caídos, como se carregasse o peso de suas preocupações. O professor parecia alguém que já tinha visto muitas coisas darem errado e não sabia mais como consertá-las.
— E eu também quero pegar meu primeiro Pokémon! — disse Ethan, que estava logo atrás de Blue. Por um momento, ela tinha se esquecido completamente da sua presença. Ela se virou e lhe lançou um olhar, ele estava quieto até agora, como se estivesse esperando o momento certo para falar. — Minha mãe ligou avisando que eu estava vindo.
— Ah, você é o filho da Joyce, da padaria, não é? — perguntou o professor. Ethan assentiu, um sorriso tímido aparecendo em seu rosto. — Entrem, entrem, — Elm fez um gesto para a porta, sua frustração anterior momentaneamente esquecida. — Eu estava fazendo chá. Achei que você viria depois do almoço, mas entre de qualquer forma. Talvez você ouça algo interessante da Blue. É Blue, não é?
Blue assentiu, um pequeno sorriso surgindo no canto de sua boca. Ela apreciou a tentativa de Elm de aliviar a tensão com um pouco de descontração.
— Acho que me lembro de você. Quando ainda era assistente do Professor Carvalho em Pallet — Elm apontou com um sorriso nostálgico, seus olhos se afastando por um momento como se estivesse lembrando de algo de anos atrás. — Você escolheu um Squirtle, se lembro bem, e estava com o neto do Professor Carvalho, Green, e aquele outro garoto, Red. Eles pegaram um…
— É, é, não vamos ficar no passado — ela interrompeu, fazendo um gesto com a mão. Seu tom era leve, mas havia um leve toque de impaciência, como se não quisesse ser lembrada dos velhos tempos. — Vamos entrar logo. Não queremos que o chá esfrie, certo?
Ele riu e assentiu, abrindo a porta para ela e Ethan entrarem. O aroma quente do chá da manhã e do pão recém assado saudou Blue quando eles entraram. Na mesa, um bule fumegante estava cercado por uma cesta de pão, manteiga, geleia, fatias de queijo e presunto, frutas vermelhas recém-colhidas, uma garrafa de leite de Miltank, salsichas, bacon de Piloswine e ovos mexidos; estava claro que o professor estava se preparando para um café da manhã farto.
Não muito longe, em um balcão, três Pokémon estavam comendo em tigelas. Um Cyndaquil, tão animado e inquieto quanto Ethan, corria animadamente entre as mordidas. Um tímido Totodile espiou por trás do bebedouro, recuando assim que percebeu os recém-chegados. Enquanto isso, um Chikorita estava deitado pacificamente em um quadrado de luz do sol, se aquecendo e fazendo fotossíntese sem se importar com o mundo.
— Sentem-se, acabei de preparar tudo, — disse o professor, ainda segurando a incubadora em seus braços. — Vou pegar o que você precisa, Blue. E também trarei uma Pokédex para você, Ethan. Sinta-se à vontade para conhecer seu primeiro parceiro.
Blue se sentou à mesa, aproveitando um momento de calma enquanto se servia de chá. Ela não havia comido nada desde que desceu do ônibus em New Bark. A comida da rodoviária era questionável demais para o gosto dela, e a ausência de uma loja de conveniência significava nada de taiyaki ou leite de Apricorn rosa para ajudá-la a saciar seu estômago roncando. O café da manhã preparado pelo Professor Elm, no entanto, tinha um toque de conforto familiar. Lembrava sua casa em Kanto, uma sensação nostálgica que ela não sentia havia muito tempo. Já fazia tanto tempo que estava na estrada, sem ver sua família, embora aquele não fosse o momento para pensar nisso.
O chá era de hibisco, não exatamente o favorito dela, mas, com uma ou duas colheradas de açúcar, era suficientemente agradável. Ela olhou para Ethan, que estava completamente envolvido com os Pokémon. Ele tentava se conectar com eles, mas sem muito sucesso. Chikorita permaneceu teimosamente no seu lugar ensolarado, ignorando-o completamente. Totodile, sempre tímido, correu para longe das tentativas de aproximação de Ethan. Apenas Cyndaquil parecia acompanhar sua energia, pulando e se mantendo no mesmo ritmo que ele.
A cena trouxe um leve sorriso aos lábios de Blue. Lembrou-a dos primeiros dias com seu Squirtle, quando ela havia acabado de começar sua jornada como treinadora. Ela enfiou a mão no bolso, passando o dedo pela Pokébola de Blastoise. Seu sorriso suavizou-se. Ela esperava que Ethan escolhesse Cyndaquil; os dois já tinham uma sinergia natural, algo que vagamente a fazia lembrar de Red e de Chase e do vínculo deles com cada um de seus Pokémon.
— Então, Blue Sem-Sobrenome, o que você é? — Ethan perguntou de repente, coçando atrás da orelha de Cyndaquil.
— Como assim?
— Tipo, o Elm disse que você estava investigando umas coisas sobre o menino que roubou o laboratório e também mencionou sobre a Equipe Rocket — Ethan respondeu, ainda sentado no chão com as pernas cruzadas, seus olhos dourados fixos nos dela. — Ele também mencionou o Red e o neto do Professor Carvalho, o Green. Você conhece eles, né?
Blue deu um pequeno sorriso irônico. Claro que as pessoas lembravam de Red, como não lembrariam? Ele era um dos treinadores mais fortes de sua geração, praticamente uma lenda viva. E tinha o Green Oak, o neto do icônico Professor Carvalho, agora um dos Líderes de Ginásio mais formidáveis de Kanto. Quanto a ela? Ela riu silenciosamente com a ideia. Comparada a nomes como Red, Green Oak, ou até mesmo Chase, pessoas como ela, Elaine, Lucy ou Harry eram praticamente notas de rodapé esquecidas mesmo depois de três anos. Para alguns a fama era passageira, mesmo quando ela também tinha ajudado na derrota da Equipe Rocket.
— Pfft — murmurou ela, tomando mais um gole de chá. — Nunca ouviu falar de mim, moleque?
— Hã? Eu deveria? — respondeu Ethan. — Quer dizer, o Red é famoso pacas, né? Ele é um dos maiores treinadores do mundo. E tem o Green, que não fica muito atrás. Ah, e tem o Chase também, ele é bem foda! Mas você? Nunca ouvi falar.
Blue sentiu uma veia pulsar em sua têmpora. Era sempre sobre aqueles três. Ninguém nunca mencionava ela. Ela poderia ter salvo toda a região de Kanto, e o crédito ainda seria de outro. Ela respirou fundo e tentou se acalmar.
— Eu sou tão foda quanto esses caras, qual é, velho — disse, colocando a mão no peito, confiante. — Meu Blastoise é um monstro, você que não viu!
— Se você diz... — ele deu de ombros. — Então me fala, é você quem vai investigar aquele garoto ruivo que invadiu o laboratório e roubou um dos Pokémon do Elm, né?
— Bem, já é bem óbvio, né? — ela disse, pousando a xícara sobre a mesa.
— Então você é uma detetive?
— Mais ou menos, me contrataram como uma — respondeu ela. — Esse garoto ruivo é importante para alguém. Alguém está procurando por ele. Eu preciso encontrá-lo, sabe?
— Ah... Sei — Ethan deu de ombros. — Para mim, esse cara é só um cuzão. Ele roubou um Pokémon que poderia ter pertencido a outra pessoa. E, sério, ele escolheu um Chikorita? Quem escolhe Chikorita? Por Arceus!
— Exatamente! — concordou ela. — Eu digo. Se eu fosse coagida pela Equipe Rocket, pegaria os três iniciais. E se fosse por motivos mais pessoais, considerando a situação da Liga Índigo e o circuito de ginásios de Johto, eu provavelmente escolheria um Cyndaquil ou Totodile. É quase como…
— Se ele quisesse jogar no modo hard?
— Essa é uma boa hipótese — disse ela. — Mas parece algo, tipo, mais pessoal, sabe? Normalmente, pelo que eu andei vendo, Chikorita é um Pokémon mais popular entre as meninas.
— Porque é fofinho e tal? — sugeriu Ethan. — Eu tenho uma prima que escolheu Chikorita como inicial. E muitas meninas da escola adoram Meganium e querem treinar uma.
— Pois é, tem isso — disse Blue. — Em Kanto, não tem tanta diferença entre o que meninos e meninas escolhem como primeiros Pokémon, como aqui em Johto. Mas eu andei investigando outras coisas, sabe?
— Uau, gata, você é fodástica demais, hein — elogiou Ethan. — Nunca ia concluir algo assim, mas, então, eu quase reprovei no ano passado antes do diagnóstico de TDAH, e minha professora de literatura me segurou por duas semanas por causa de uma redação. Eu tive que fazer monitoria, acredita?
— É, deu para perceber — murmurou ela.
— Ei!
A menina riu. O Professor Elm voltou um pouco depois, ele tinha trago consigo uma caixa consigo com alguns papeis e coisas, Blue olhou um tanto assustada, o menino ruivo Dante apenas havia roubado uma Chikorita e não o banco central de Johto. O Professor sentou-se em uma poltrona na frente de ambos e olhou para Ethan e depois para Blue.
— Bem, senhorita Blue, acho que eu tenho as informações que você precisa — disse Elm. — Não do menino, a polícia não conseguiu puxar nada no banco de dados deles, mas eu tenho algumas informações do Chikorita que ele pegou e do criadouro de onde ele veio. Como você sabe, os iniciais sempre são criados em criadouros distantes e financiados pela Liga Índigo e pelo Comitê da Fita, eu acho que pode ser um pouco útil, sabe?
A menina coçou o pescoço e olhou para o cientista e deu um meio-sorriso.
— É… eu acho que pode vir a calhar — ela deu de ombros. — Mas por que está me dando essa informação, Professor?
— Por que nos últimos tempos, eu fiz uma parceria com alguns criadores e estou cruzando iniciais mais distintos para os novos treinadores e coordenadores — fala Elm. — Como deve saber, meu campo de pesquisa são as habilidades Pokémon assim como a sua reprodução e seus ovos. Eu quem classifiquei as espécies Pokémon em grupos de ovos como parte da minha pesquisa no começo da década, então eu pensei usar isto a meu favor e para criar algo que diferenciasse Johto de Kanto quanto a distribuição de Pokémon para os novos treinadores.
— Então você fez os Pokémon ficarem fodelões? — pergunta Ethan com Cyndaquil nos braços.
— De certa forma, sim — disse o professor. — Eu andei experimentando cruzá-los com diferentes parceiros para que herdassem golpes de seus pais, eu os chamo de movimentos de ovos. Por exemplo, o pai do Cyndaquil que segura nos braços, ele é um Arcanine que possui o golpe Flare Blitz, ou seja…
— O Cyndaquil tem Flare Blitz também? Porra, eu já ia escolhê-lo, agora só tenho mais motivos — diz Ethan com o musaranho de fogo nos braços, acariciando-o.
— Ha-ha, que vivaz você é, Ethan — elogia Elm. — Bem, como eu ia falando, senhorita Blue, o Chikorita que estava entre os iniciais da última leva, ele também é especial, já que possui como movimento de ovo o golpe Ancient Power, mas acredito que o garoto que o roubou nem se deu ao trabalho de descobrir. Isso também me lembra de que eu deveria ter informado isso à Lyra… O Totodile dela tem acesso ao golpe Aqua Jet…
— Porra, a Lyra também tirou a sorte grande — comenta Ethan, embora Blue não soubesse quem diabos era Lyra.
— Então, sem enrolar, quer dizer que os iniciais de Johto agora tem acesso a golpes herdados de seus pais através do cruzamento, é isso? — diz Blue tentando tirar a conclusão e Elm assente com a cabeça. — Então eu devo ir a esse criadouro em específico para poder coletar mais informações que o necessário para tentar encontrar esse menino, é isso? Okay. Já estou vendo que vou ficar em um grande pingue-pongue por Johto para achar Dante.
— Oh, então você já sabe o nome dele… — diz Elm coçando o queixo. — Posso te ajudar a procurar mais. Como pesquisador-chefe na região de Johto, junto com Mr. Pokémon, eu tenho certo acesso ao banco de dados da Liga Índigo quanto aos treinadores do circuito de ginásios de Johto. Posso tentar encontrar algum Dante ali. Mesmo ele tendo roubado o Chikorita, talvez por estar em sua posse a Pokébola deve ter sido registrada como dele em algum Centro Pokémon.
— Que nome estranho — comenta Ethan com Cyndaquil no colo. — Parece nome criminoso, sabe? Tipo, de mafioso. Se bem que o cara roubou um Pokémon, eu não me surpreenderia se ele estivesse em conluio com alguma organização criminosa.
— Esperemos que não — disse Blue, apreensiva.
— Enfim, Ethan, vejo que já escolheu o Cyndaquil como seu parceiro, não é?
— Ah, cara, não tinha como eu não escolher — ele deu um sorriso enquanto segurava o musaranho. — Esse carinha é a minha vibe. Fora que meu pai tem um Typhlosion, sabe? Eu quero ter um igual ao dele.
— Seu pai? — perguntou Blue. — Quem é ele?
— Phillip Kohler, ele trabalha em um dos escritórios da Sub Rosa — responde Ethan. — A empresa que tá ajudando a Liga Índigo, sabe?
— É, não conheço — ela deu de ombros. — É só isso, professor?
A menina apontou para a caixa com os papeis. O Professor Elm assentiu com a cabeça que sim e entregou para a garota. A caixa era infelizmente pesada, deveria ter mil e um papeis ali dentro, Blue se perguntava se ela conseguiria ler aquilo tudo antes de partir para esse criadouro em algures da região de Johto.
— Ah, já ia me esquecendo — o Professor Elm puxou algo do bolso de seu jaleco e entregou tanto para Ethan quanto para Blue, era um aparelho semelhante a um celular de flip, era uma Pokédex, uma na cor vermelha para Ethan e uma na cor azul para Blue, por ironia do destino. Céus, por que ela tinha de ter nome de uma cor primária mesmo? — Como está em Johto, senhorita Blue, achei que uma Pokédex pudesse vir a calhar e, bem, Ethan, você de qualquer forma iria precisar de uma. E de Pokébolas também.
Ele entregou cinco Pokébolas ao garoto que segurou-as junto da Pokédex.
— Obrigado, profê! — grita Ethan em animação.
— Hã, valeu, eu acho — diz Blue checando sua nova Pokédex, ela teria que fazer uma transferência de dados de sua antiga para esta depois.
— Espero que faça bons proveitos enquanto estiver em jornada, caro Ethan — diz Elm. — E para você, senhorita Blue, boa sorte em seu caso. Eu vou ter que me retirar agora, pois tenho que analisar mais sobre o ovo que recebi do criadouro ontem, é de uma espécie que eu e Mr. Pokémon estamos observando e tentando reintroduzir à natureza, no mais, fiquem a vontade para tomar café antes de saírem.
O cientista saiu da sala de estar, deixando os dois jovens ali. Ethan continuou brincando com Cyndaquil por um tempinho enquanto Blue apreciava um pouco do chá com uma torrada com uma quantidade absurda de geleia azulada que deveria ser de Rawst Berry. Ela lia um dos documentos na caixa que Elm havia trago, era toda uma papelada burocrática sobre o criadouro e o Chikorita que havia sido trago, sobre quem eram os pais do Pokémon, o responsável por criar e cuidar do ovo, quem havia transportado até o laboratório de Elm e tudo mais.
Ela suspirou, mas depois de ler duas ou três páginas ela já tinha alguma informação sobre onde ir a seguir. Não era nada sobre o paradeiro de Dante, mas ao menos ela poderia investigar mais a fundo enquanto estivesse na estrada. Sua próxima parada seria em uma fazenda na Rota 32, bem ao sul de Violet, isso a compraria algum tempo e permitiria que ela pudesse verificar mais informações sobre Dante, além de entrar em contato com Erlking no meio tempo.
Depois que ela terminou seu café, ela se levantou, espanou as migalhas de sua roupa e saiu pela porta, sem despedir-se de Ethan. A garota desceu as escadas da colina e suspirou, carregando aquela caixa pesada em mãos. Bancar a detetive adolescente tinha suas desvantagens as vezes, ainda bem que a grana que Erlking estava disposto a pagar compensava por tudo.
— Ei, ei, espera aí — grita Ethan.
— Que foi? — respondeu Blue, arqueando uma sobrancelha, ajustando a caixa pesada nos braços.
Ethan parou ao lado dela, ofegante. Cyndaquil pulou para a frente, farejando curioso a caixa cheia de papéis. O garoto ajeitou o boné antes de falar, com um sorriso sem jeito.
— Bom... eu tava pensando... você não quer companhia nessa sua investigação, não? Quer dizer, eu vou começar minha jornada agora e, sabe, seria legal aprender umas coisas com você. Fora que, honestamente, eu meio que tô sem rumo. Não seria ruim dar uma força pra você e talvez pegar umas dicas no caminho.
Blue deu uma risada curta, incrédula.
— Acha que é só se juntar à festa, é? Eu não tô aqui pra ensinar ninguém, garoto. Tenho um trabalho a fazer, e se você atrapalhar, vai ser problema pra mim.
Ethan não se deixou intimidar. Ele cruzou os braços, encarando-a com determinação.
— Eu não vou atrapalhar, prometo! Sei que você tá atrás desse tal de Dante, mas eu também tô curioso pra ver o que tá rolando. E, ei, eu posso carregar essa caixa pra você.
Blue o observou por um momento. Ele parecia genuinamente disposto, embora ela soubesse que sua energia entusiasmada poderia acabar sendo mais um fardo do que uma ajuda. Ainda assim, havia algo em Ethan que a lembrava de um certo garoto de boné que ela conhecia muito bem.
— Tá bom, tá bom — disse ela, suspirando. — Mas se você me atrasar, tá fora. E mais uma coisa: nada de reclamar. Se tiver que andar por horas, escalar uma montanha ou enfrentar algum Pokémon irritado, você fica quietinho, entendeu?
— Entendido! — disse Ethan com um sorriso largo, pegando a caixa de suas mãos com facilidade. — Viu? Já tô ajudando.
Blue revirou os olhos, mas não pode deixar de sorrir um pouco.
— Tá, vamos logo antes que eu me arrependa.
Os dois começaram a caminhar pela trilha que levava à Rota 32. O sol já começava a se pôr, pintando o céu com tons alaranjados e roxos. Cyndaquil corria na frente, parando ocasionalmente para farejar arbustos ou brincar com folhas secas. O som dos pássaros e o farfalhar das árvores criavam um cenário tranquilo, mas Blue sabia que a calma era apenas temporária. Ela tinha uma missão, e algo dentro dela dizia que a busca por Dante seria tudo menos fácil.
Enquanto caminhavam, Ethan puxou conversa novamente.
— Então, qual é o próximo passo?
— Há uma fazenda na Rota 32, bem a sul de Violet, onde criaram o Chikorita que foi roubado — ela disse. — Talvez eu consiga mais informações lá. Com sorte, vou descobrir algo que aponte pra onde ele foi.
— Parece um plano — disse ele, ajustando a caixa no ombro. — E ei, se precisar de ajuda pra enfrentar uns Pokémon no caminho, eu tô aqui, viu? Eu e o Cyndaquil já somos praticamente uma equipe de peso.
— Uma equipe de peso, é? — Blue riu. — Abaixa a bolinha, que seu Cyndaquil não tanka nem um Pidgey por agora. Vai precisar treinar duro caso queira enfrentar o seu primeiro ginásio, viu?
Ethan fingiu indignação, mas logo deu risada também.
Os dois continuaram andando, saindo da propriedade do Professor Elm, deixando as colinas silenciosas de New Bark para trás. Talvez ter alguma companhia não fosse inteiramente ruim, Ethan parecia prestativo e entusiasmado em ajudar, nem que fosse com apenas uma caixa de papeis e, bem, ele a lembrava de Red e de Chase lá atrás quando ainda era uma iniciante viajando por Kanto.
É, talvez Ethan não fosse de todo mal.